A epidemia da incivilidade: onde ficaram os nossos modos? Por Chico Cavalcante

Publicado em por em Crônica, Opinião, Pará

A epidemia da incivilidade: onde ficaram os nossos modos? Por Chico Cavalcante

Qual é o nosso lugar aqui, nesta cidade – neste mundo – onde a aspereza substituiu o bom dia, onde o interesse próprio atropela o coletivo, e onde gestos básicos de humanidade parecem relíquias?

Sim, qual é o lugar da delicadeza numa era que viu não apenas a ascensão alarmante da extrema-direita, com seu séquito de racismo estrutural, misoginia, truculência e xenofobia, mas também a eclosão de uma epidemia paralela, mais difusa e igualmente tóxica: a epidemia da pura e simples falta de educação?

Não falamos de protocolos rígidos, mas do cimento básico da convivência. Da fila dupla que estrangula o trânsito e a paciência e atrás o fluxo de alguém que não pode perder a hora. Do assento no ônibus negado ao idoso que se desequilibra ou à grávida que carrega o futuro. Da buzina ensurdecedora diante de um hospital onde a vida pende por um fio.

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Do palavrão que estala no ar como um chicote, no meio de um restaurante, desrespeitando todos os ouvidos. Do ato primitivo de mijar na rua, transformando o espaço comum em latrina. Do silêncio rude no elevador, que nega o simples reconhecimento do outro a um “bom dia”. Do motorista do Uber que obriga a ouvir um pastor raivoso ou o musak gospel. Da embalagem lançada ao chão com desdém, como se o chão não fosse de todos. Nunca, talvez, tanta grosseria foi tão ostensivamente praticada e, pior, tão ivamente tolerada.

Esta epidemia não surge no vácuo. Ela floresce no mesmo terreno árido onde vicejam o discurso de ódio e o desprezo pelo diferente propagados pela extrema-direita. Quando a retórica política normaliza a agressão verbal, o insulto como arma, a agressão como argumento, e a desumanização do “outro” – seja o imigrante, o pobre, o progressista –, quebram-se diques fundamentais.

O respeito pelo espaço público, pela dignidade alheia, pela noção de bem comum, definha. Se o discurso público é truculento e divisivo, por que o cidadão comum deveria ser cortês e solidário? Se líderes e movimentos propagam o “cada um por si” e o desdém pelas regras sociais, por que o indivíduo guardaria compostura na fila ou no trânsito? A incivilidade cotidiana é o eco, banalizado mas penetrante, da intolerância que ganha palanque e visibilidade no congresso nacional e no velho oeste chamado redes sociais.

Como alguém, que sempre buscou na história do outro, nas ruas e nos bairros, algum sinal de humanidade, pode sobreviver? Em Brasília, onde o ressentimento encontrou voz política, a sensação de abandono e a erosão do tecido social criaram terreno fértil não só para a fala extremista, mas também para a desagregação dos laços de respeito mútuo. Quando o Estado e a sociedade parecem falhar, quando a raiva cresce, os pequenos pactos de civilidade são os primeiros a ruir.

Precisamos de construtores de pontes, dos que lembram, na ação concreta, que a cidade se faz no olho no olho, no favor, no “bom dia” dito com intenção, no lixo recolhido, no assento oferecido. São a prova viva de que mesmo onde a incivilidade e o desespero avançam, a vontade de cuidar, de ligar, de ser gente como a gente, persiste.

Os tempos são difíceis para o sensível, especialmente aquele que insiste em estar no luta, a ouvir os que a bolha ignora. Seremos alvo daqueles que lucram com o ressentimento e a divisão, que preferem que as histórias de solidariedade e educação fiquem no escuro. Mas é exatamente por isso que a nossa presença se torna mais vital.

Contra a epidemia da falta de educação e a onda de intolerância que a alimenta, o nosso antídoto deve ser o mesmo: estar aqui. Com os pés no chão. Com empatia. Vivendo as histórias que mostram o outro lado da moeda – não o do ódio e da incivilidade, mas o da comunidade que resiste, do gesto gentil que persiste, da educação que, mesmo combalida, ainda é a base possível de um convívio humano.

Aqui estarei. Para dizer “bom dia”. Para denunciar a fila dupla. Para celebrar quem cede o lugar.

Para lembrar, a cada palavra e a cada olhar, que a Belém que queremos não se faz com truculência ou desdém, mas com o simples, revolucionário e cada vez mais necessário ato de educar-se para o outro.

É o meu lugar. E é a minha luta.


Chico Cavalcante é jornalista e consultor político. Fundador da agência Vanguarda, é o estrategista chefe da Vanguarda MKTPOL, agência especializada em consultoria e marketing político. Leia também de: Não foi uma demonstração de força e O povo contra as elites. E ainda: A América não será grande de novo.

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