
Palavras guardam memória. Quando distantes de seu verdadeiro significado, perdem a capacidade de expressar verdades. A palavra “força”, por exemplo, representa a habilidade de um corpo ou objeto de causar alterações no movimento ou na forma de outro corpo ou objeto.
Só pode ser considerada “força” se tiver a propriedade de movimentar ou alterar algo. Confundir “força” com “massa” é um equívoco comum na avaliação de grandezas. Ao contrário da força, a massa representa a inércia, quantifica a matéria que compõe um corpo. Esses fenômenos físicos têm implicações sociais quando seus conceitos são aplicados a grupos humanos.
A manifestação bolsonarista na Avenida Paulista, no domingo, 25 de fevereiro de 2024, que reuniu 185 mil pessoas, foi interpretada por muitos analistas, inclusive da esquerda, como “uma grande demonstração de força” do ex-presidente e de seus seguidores.
- Leia também de Chico Cavalcante: O povo contra as elites.
O cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concluiu que a manifestação foi “uma grande aposta de Bolsonaro para demonstrar força e tentar tornar as investigações e decisões judiciais mais desafiadoras”, enquanto o jornal 24 afirmou que a manifestação foi “uma demonstração da força política de Bolsonaro”, que continua sendo “irado” por seus eleitores.
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Respeito os pontos de vista, porém discordo. Começando pela análise quantitativa. A manifestação ocorreu em São Paulo. Segundo o Censo 2022, a população da Região Metropolitana de São Paulo é de 20.743.587 habitantes, uma população superior a de vários países, como Chile ou Portugal.
É possível estimar então que cerca de 10 milhões de pessoas, metade do total, poderiam estar no quadrante de mobilização das igrejas neo-pentecostais, dos partidos de direita, dos parlamentares ligados a eles e das máquinas públicas municipal e estadual que se empenharam em convocar pessoas para o evento. No entanto, o número de indivíduos mobilizados e presentes no ato foi inferior a 2% do público potencial. Um quantitativo modesto.
O dia do Orgulho LGBT em São Paulo não reúne menos de 4 milhões de pessoas. Objetivamente, Bolsonaro mobilizou apenas seus apoiadores mais convictos. Deveríamos chamar a isso de uma “demonstração de força”?
Não. Definitivamente. Além da constatação óbvia – Bolsonaro ainda mantém prestígio entre uma parcela da população e conseguiu mobilizar essa parcela naquele domingo -, o ato não demonstrou força, mas inércia.
Quem eram as pessoas presentes? Dados da USP mostram que o grupo era majoritariamente masculino, branco, com nível socioeconômico acima da média, de meia-idade ou idosos, católicos e assumidamente de extrema direita. Eles se autointitulam conservadores – daqueles que afirmam defender a vida dos fetos, mas celebram a morte de crianças em Gaza. Ou seja, ali estava a massa inerte que compõe o bolsonarismo.
O que realmente impressionou no evento e nas narrativas ali presentes foi a reafirmação do poder das redes sociais em mobilizar e amalgamar sentimentos. As alegações fantasiosas de uma suposta “aliança entre o PT e o Hamas”, de que as declarações de Lula sobre a ofensiva de Israel em Gaza traria “uma guerra para o Brasil”, de que os cristãos têm o dever de apoiar Israel, e outras narrativas delirantes que alimentam a massa que segue Bolsonaro e sua comitiva.
A politização do terraplanismo político invadiu as redes sociais e, por meio de um mar de notícias falsas, se nutre de certezas que se pronunciaram nas ruas naquele domingo. Isso é preocupante e desafiador para as forças progressistas que combatem o retrocesso, mas não acrescenta nada de novo ao cenário de antes da manifestação.
Obviamente a esquerda pode cometer um erro que ajude a mudar os fatos: aceitar a provocação da direita e entrar em uma queda de braços com os apoiadores do derrotado inelegível. A imprensa relata que membros do PT e do governo Lula estão “divididos” quanto à conveniência de convocar um ato “em defesa da democracia” previsto para o próximo dia 23. Não há conveniência alguma nisso.
Qual seria a utilidade em competir com quem perdeu as eleições e está prestes a ser condenado, possivelmente preso? A esquerda precisa abandonar a prática de competir no atacado e de pregar para fiéis e retomar o trabalho de base, o diálogo direto e a conquista de território.
A esquerda precisa consensualizar o entendimento de que o desfile na avenida Paulista não foi um ato de força, pois não gerou mudanças, não alterou a realidade nem as perspectivas futuras. O aporte de Bolsonaro permanece apreendido conforme decisão judicial. O Tribunal Superior Eleitoral que o declarou inelegível duas vezes não mudou a sentença. A investigação da Polícia Federal sobre a participação de Bolsonaro na intentona golpista está repleta de evidências. Nada disso se alterou depois da manifestação na Avenida Paulista.
A noite caiu naquele domingo e o sol nasceu na manhã seguinte. O mundo seguiu girando e o tempo correndo contra o ex-presidente e seus sonhos totalitários. O desfile verde-amarelo da Paulista não foi uma demonstração de força. Foi, talvez, um grito de desespero.

Chico Cavalcante
Jornalista e consultor político. Fundador da agência Vanguarda, é o estrategista chefe da Vanguarda MKTPOL, agência especializada em consultoria e marketing político
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