
Um suspiro não é ausência de som; é excesso de mundo contido num sopro; é o som que resta quando tudo já foi dito, quando a palavra falha, quando a linguagem evapora como os corpos d’água na estiagem amazônica. A canoa, ali, estática, é mais do que madeira esquecida, é corpo amputado de seu fluxo, é embarcação órfã do tempo, como em “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, ela pertence a um limbo entre o ir e o permanecer, entre o visível e o mito.
Mas agora não há mais rio para remar, não há margem a contemplar, não há pai que volte. A floresta, que outrora sussurrava aos seus, hoje range de sede, o silêncio da canoa encalhada ecoa como o que Clarice Lispector chamaria de um “grito que não se ouve, mas que vibra por dentro do osso”.
Esse não é o fim que os épicos previram, não há catástrofe súbita nem fogo purificador; o fim aqui é morno, poeirento, diário, a cada manhã, menos um peixe; a cada tarde, menos água; a cada noite é mais corpos migrando à deriva em estradas de barro e promessas políticas. É o fim que Rachel Carson anteviu em “Primavera Silenciosa”: aquele em que a ausência de vozes (de pássaros, rios, gente) diz mais do que qualquer sirene.
Talvez a terra acabe assim: não com bombas, mas com canoas paradas, não com o barulho da guerra, mas com o silêncio daquilo que já não flui, e, ainda assim, nesse silêncio, resta um eco: uma memória do que foi; um aviso do que não pode mais ser esquecido.
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O que estamos vivendo hoje, na Amazônia e em outras bordas do planeta, não é apenas uma crise ambiental: é uma reorganização profunda do habitar humano. Populações inteiras estão deixando suas terras não porque desejam ir, mas porque ficar já não é possível, a terra seca, o peixe some, a chuva não vem, o calor parte o solo. E o que se desfaz, antes de tudo, é o laço entre corpo e território, entre língua e floresta, entre memória e casa, o que chamamos de “desenraizamento planetário”.

Um processo íntimo, devastador, invisível, geográfico, psíquico, simbólico e espiritual, pois o laço entre corpo e território é também o laço entre língua e floresta, entre memória e casa. Daí quando a floresta que ensinava os nomes das plantas morre, a língua também se esfarela; quando o lugar de enterrar os mortos é perdido, a memória se torna órfã. O que se rompe, é o o à água, à comida ou ao clima ameno, ao direito de continuar sendo quem se é.
É uma ruptura ontológica, uma reescrita forçada daquilo que significa habitar, de ar a descontinuidade do mundo, como diria Gaston Bachelard, onde a casa já não acolhe, o chão já não sustenta, e o tempo se torna uma espera em suspensão. As margens dos rios tornaram-se margens do fim, e as aldeias, com suas roças queimadas e suas canoas imóveis, já não pertencem a si mesmas, o deslocamento que emerge dessas terras é um deslocamento existencial, um desmantelamento da vida como continuidade de um lugar.
As populações não partem por escolha, não rumam em busca de futuro, mas fogem da impossibilidade do presente. A terra racha como pele ressecada, a chuva se retrai como um deus magoado, como em alguns trechos do Médio Rio Solimões, a estiagem transformou as águas em areia compacta, fazendo das comunidades ribeirinhas ilhas de abandono, que significa definhar junto com os rios. Como em “Os Sertões” de Euclides da Cunha, onde o chão se vinga do homem, agora é a floresta que cobra seus mortos e obriga o humano a migrar com os olhos fundos, sem lugar para voltar.
A migração é tão antiga quanto o próprio caminhar, povos se movem por fome, por guerra, por desejo ou por desespero, mas ultimamente, algo se alterou de forma radical na dimensão e na razão do deslocamento. Se antes migrar era uma travessia entre mundos humanos, agora se torna uma tentativa de escapar do colapso do mundo natural, não se parte apenas para sobreviver ao outro, mas para fugir do derretimento das bases físicas da existência, porque é o planeta que se move sob os pés, e não há bússola para essa deriva.
Os deslocados do clima não se encaixam no léxico tradicional das crises humanitárias, eles não fogem de tiros, mas de secas; não atravessam fronteiras por ideologias, mas porque o rio secou, o solo virou pó, ou a floresta pegou fogo. Como diria Rob Nixon, são vítimas de uma violência lenta que não explode, mas corrói de forma contínua, até que o cotidiano se torne irrespirável. São os refugiados de um futuro que se antecipou, que já não cabe mais no calendário dos relatórios climáticos e que insiste em aparecer nos barcos sobrecarregados do Sudeste Asiático, nos desertos do Sahel e nas beiras dos igarapés amazônicos.

A Amazônia, nessa equação, é o elemento central e testemunha mutilada do desequilíbrio do clima, na mudança na curva do rio, dos peixes que não sobem, da mulher que caminha quilômetros para achar água limpa. Não é preciso saber o que é “aquecimento global” para entender que algo mudou, basta olhar o céu e notar a ausência dos ventos certos, basta sentir o calor que não recua nem à noite.
Não se trata apenas de uma crise ecológica, e sim de uma redefinição forçada do que é habitar, a Amazônia tornou-se um campo visível da transformação climática global, um laboratório brutal de suas consequências humanas. Os que são expulsos de suas terras por incêndios, secas ou enchentes não têm nome nas estatísticas do refúgio, são tratados como migrantes internos, como se migrar da floresta para a cidade fosse apenas um deslocamento geográfico e não o fim de um modo de vida, a travessia que fazem é ontológica, deixam para trás uma forma inteira de estar no mundo e recebem em troca o anonimato e a precariedade.
No final de 2023, a paisagem do Rio Negro tornou-se um espelho seco do colapso, barcos encalhados, arqueados, ferrosos, estáticos, parecia saída de um tempo pós-histórico, como se o rio tivesse sido esvaziado de seu próprio destino. Ali, onde antes havia correnteza e vida, restou uma espécie de cemitério hídrico, as casas e barcos, que são extensão do corpo ribeirinho, jaziam imóveis sobre o leito exposto; a brincadeira das crianças se tornavam poeirentas e perigosas pelo alargamento das crateras, onde antes mergulhavam com os olhos abertos; e, o céu, sem nuvem nem pudor, insistia em pesar sobre a pele dos que ficaram.
Com a seca, a pesca sumiu, os barcos de transporte não avançavam, os postos de saúde ficaram desabastecidos, e a água potável foi substituída por poças infectas. As aldeias, erguidas sobre conhecimentos milenares, tornaram-se invisíveis, famílias inteiras partiam para Manaus, não por desejo, mas pelo estrangulamento de sua permanência no lugar.
A travessia até Manaus, Itacoatiara, Parintins, não foi um êxodo voluntário, mas uma expulsão atmosférica, que demandou muitas vezes o acolhimento frio, burocrático, carregado de incompreensões, onde o ribeirinho, o indígena, o agricultor tornaram-se números fora do lugar.
O deslocamento forçado por mudanças climáticas em muitos casos mundiais não é reconhecido como figura jurídica legítima, não há abrigo institucional para quem foge do calor, da estiagem ou do envenenamento do solo. As categorias de “refúgio” e “migração forçada” permanecem presas a narrativas de guerra ou perseguição política, ignorando que hoje o clima é um agente ativo de exílio, o mundo jurídico, nesse aspecto, anda atrás do tempo, e, enquanto os códigos dormem, os corpos caminham, silenciosos, desenraizados, com os pés cobertos de barro seco e a memória úmida de um rio que já não volta.

A questão do desenraizamento não começa com a partida e sim com o colapso do vínculo, pois quando o lugar já não oferece as condições mínimas para a vida, é o vínculo afetivo, cultural, espiritual com a terra que primeiro se rompe. Walter Benjamin chamaria de “experiência empobrecida”, pela perda do vínculo denotar quebra do sentido de mundo. O Rio Negro e outros afluentes do Rio Amazonas não secou apenas fisicamente; ele secou enquanto imaginário, enquanto mapa afetivo, e junto disso, a seca esteriliza uma parte do povo que dele dependia para se reconhecer, deslocando profundamente a própria ideia de casa.
Michel Agier, ao analisar os deslocamentos humanos contemporâneos, convoca a enxergar o exílio não mais como um “acidente da história”, mas como uma “condição estrutural da modernidade tardia”, nas últimas décadas, a mobilidade forçada deixou de ser uma anomalia para tornar-se parte da paisagem regular do mundo globalizado, seja por guerras, perseguições ou, cada vez mais, por colapsos ambientais.
O autor propõe uma chave conceitual potente: a de que vivemos sob uma “cosmopolítica do deslocamento”, onde sujeitos são despossuídos não apenas de terras, mas do “direito de permanecer”, o mundo se fragmenta, e com ele se fragmenta o sentido de cidadania que, até então, se ancorava na ideia de “pertencimento fixo a um território delimitado”.
A cidadania, tal como a modernidade a forjou, revela-se inadequada para os tempos em que as fronteiras do habitar são fluidas, precárias e múltiplas, é urgente repensá-la não mais como um direito concedido pelo Estado a um indivíduo fixado a um solo nacional, mas como a possibilidade ética e política de viver com dignidade, onde quer que a vida precise acontecer, em outras palavras, a cidadania deve emergir como um “direito à presença”, mesmo que essa presença esteja em trânsito.
Quando os ribeirinhos da Amazônia, os pescadores do Delta do Níger ou os povos do Sahel são empurrados para longe de suas geografias de origem, o que está em jogo não é apenas um território perdido, mas a desautorização de suas formas de vida, pois habitar, nesse contexto, torna-se um ato de resistência e reconhecer esse direito é o primeiro o para reconstruir os laços entre o mundo e os que dele foram arrancados.
Essas comunidades não apenas vivem na terra: elas são a terra, o território não é um recurso a ser explorado, mas um organismo relacional, um texto sagrado onde estão inscritos os nomes dos mortos, as rotas dos ventos, os ciclos da pesca, as histórias do tempo, ser arrancado dessa geografia é ser arrancado do mundo. O deslocamento, nesse caso, equivale a uma ruptura ontológica, um apagamento da linguagem, da ritualidade, da prática ancestral de saber viver, já que não desloca apenas corpos, também, cosmologias inteiras.
Ao perderem o território que os reconhecia, esses povos também perdem o direito de serem escutados em seus próprios termos, nas cidades para onde são lançados, sua forma de habitar é vista como atraso, sua oralidade como ignorância, sua relação com a terra como superstição. Essa desautorização é a face invisível do colonialismo climático: quando o exilado ambiental é forçado a adaptar-se aos modelos urbanos hegemônicos, o que se espera dele não é apenas deslocamento geográfico, mas reconfiguração subjetiva.
Espera-se que abandone seus modos de vida para se tornar um “cidadão funcional”, mesmo que isso signifique viver sob precariedade permanente, é o que Boaventura de Sousa Santos chamou de “epistemicídio”, o assassinato não do corpo, mas das formas de conhecer, sentir e pertencer ao mundo.
A Amazônia, mais do que uma floresta, é um espelho ampliado das contradições do mundo, ela escancara o esgotamento de dois paradigmas que insistem em moldar o presente: de um lado, o modelo extrativista, herdeiro direto da colonização, que transforma rios em corredores logísticos e florestas em commodities; do outro, um modelo humanitário modernizante, bem-intencionado, mas cego às epistemologias que não cabem nos manuais da ONU.

O extrativismo avança como trator, literal e metaforicamente, apagando os ritmos da floresta e impondo ao território a lógica do monocultivo, da produtividade sem pausa. Já a ajuda humanitária clássica tenta remediar os sintomas, sem compreender que o colapso é estrutural, e que não se trata apenas de salvar vidas, mas de ouvir os modos de vida que vêm sendo sistematicamente silenciados.
É nesse ponto que o conceito de “capitaloceno”, proposto por Jason W. Moore, se impõe com clareza: o problema não é o clima em si, mas o sistema econômico que estrutura nossa relação com a Terra, como se ela fosse um fundo inesgotável de recursos. O tempo da soja, do gado, do minério, operam sobre o tempo da floresta como uma máquina de encurtar a vida, as chuvas já não seguem o ciclo, os rios transbordam fora de hora, e o que antes era previsível, o canto das cigarras, a subida do peixe, a seca das trilhas, agora é ruína.
A crise climática não é um capítulo ambiental do capitalismo: ela é o próprio coração podre do sistema, remediá-la sem questionar o modelo de tempo, lucro e morte é como tentar regar uma árvore com petróleo. É nesse cenário de colapso que as ideias de Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski ganham força: a separação entre humanidade e natureza, base da modernidade ocidental, foi uma “ficção conveniente”.
Agora é uma armadilha, a natureza deixa de ser vista como “o outro” e a a colapsar junto conosco, o que se desfaz não é apenas a paisagem, mas o próprio conceito de mundo habitável. O que se desenraíza com os povos da floresta não é apenas o corpo deslocado, mas a narrativa que sustentava a nossa civilização: a ideia de que é possível viver sem escuta, sem reciprocidade, sem limites.
A Amazônia nos devolve esse limite, não como metáfora, mas como ferida aberta, nos obriga a reimaginar o planeta não como recurso, mas como parente, e, talvez seja aí, no reencontro com essa ancestralidade esquecida, que possamos encontrar o que ainda resta de futuro.
Rob Nixon, ao cunhar a expressão “slow violence”, ofereceu ao mundo um novo modo de perceber as catástrofes que não gritam, mas que silenciam, violências que não explodem em manchetes, mas que se infiltram nas veias do tempo como veneno lento. A seca do Rio Negro, a salinização dos solos no Amapá e a contaminação por mercúrio nas aldeias do Tapajós são sintomas dessa erosão contínua.
Não há tiros nem sirenes, mas há o mesmo efeito: a impossibilidade de seguir vivendo como antes, em que casas desabam, não por bombas, mas porque o rio não chega mais; crianças adoecem, não por vírus, mas porque o peixe, contaminado, traz o veneno dentro do ventre. A “slow violence” desautoriza o cotidiano e isso é talvez mais cruel que a violência imediata, pois não nos dá o direito à urgência.
A resposta técnica? Ainda que necessária, é insuficiente; modelos matemáticos, projetos de mitigação, alertas climáticos, relatórios de impacto… tudo isso opera na superfície se não formos capazes de tocar o fundo simbólico da ferida, Ailton Krenak, com a lucidez de quem escuta a Terra como quem escuta um parente, diz que “precisamos adiar o fim do mundo”.
Esse adiamento não virá por decreto, nem por diplomacia, virá, se um dia vier, de uma mudança na temperança da forma como sonhamos, como imaginamos o futuro, como desenhamos as cidades e os corpos que as habitam. A arte, a literatura e a ciência que não se furta ao mundo são ferramentas de reencantamento, não se trata apenas de entender o colapso, mas de reaprender a desejar diferente.
Talvez devêssemos abandonar a ideia de cidade como depósito humano e retomar a noção de morada como extensão do território afetivo, projetar uma cidade que escuta, que acolhe não apenas a carne, mas a história que vem com ela. Uma cidade que compreende que o corpo de um ribeirinho carrega o som do remo, o cheiro do matapi, a dança ritualística, e que tudo isso precisa caber no asfalto, se é ali que ele terá de viver.

Precisamos sonhar com políticas que vejam a terra como corpo e os corpos como parte da terra, porque só com essa imaginação encarnada, esse urbanismo de raízes e não de cercas, será possível transformar o deslocamento em reenraizamento digno e não em abandono sistemático. Sonhar, aqui, não é fuga da realidade, é o nome da última esperança.
Há, um chamado que não pode mais ser adiado, que vem das margens feridas do mundo, dos corpos em trânsito, dos rostos encobertos pela poeira do caminho, se o desenraizamento é planetário, rompe fronteiras, idiomas e calendários, a resposta a ele também precisa ultraar os limites da técnica e da geopolítica. Isso começa na escuta capaz de reconhecer nos deslocados não os fantasmas do fracasso, mas os anunciadores de um tempo por vir. Os que caminham com a vida amarrada em sacos plásticos e a memória costurada nos nomes dos rios não extintos, esses não são apenas os que perderam tudo, são os que já sabem o que está por vir.
Escutar os que perderam a terra como mensageiros do futuro exige humildade, abandonar a ideia de que o saber está concentrado nos mapas climáticos ou nos gabinetes das cúpulas ambientais, exige reconhecer que os corpos em deslocamento são arquivos vivos de uma verdade que ainda não sabemos decifrar completamente.
Talvez, como sugeriu Davi Kopenawa, os brancos estejam sonhando o fim, enquanto os povos da floresta, mesmo feridos, ainda sabem sonhar o mundo, já que o colapso que hoje chamamos de climático é também o colapso de uma ontologia moderna, fundada na separação entre natureza e cultura, razão e corpo, humano e Terra. O que está ruindo não é a Terra em si, mas um modo específico de habitá-la e de ignorá-la, os deslocados climáticos são, assim, testemunhas do colapso e sementes de outro mundo possível.
Não temos resposta pronta e talvez seja nessa incerteza, nessa suspensão do horizonte previsível, que resida a possibilidade mais real de futuro que não seja construído com fórmulas importadas, mas com escuta, com cuidado, com presença. Um futuro em que a terra seja novamente matéria viva e não solo de lucro, em que o território não seja apenas onde se pisa, mas onde se pertence. E os que hoje caminham exilados da floresta, do sertão, das ilhas afundadas, não estejam mais sozinhos porque enfim, estaremos todos aprendendo a estar aqui, de outro jeito.


Josué Vieira, santareno, é professor, escritor, poeta e pesquisador sobre Sociedade, Cultura e Amazônia. Mora em Manaus (AM). Leia também dele: Katy, um reino além da consciência. E ainda: Desesperos, morte e silêncio na Colônia Vertical dos Perdidos.
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